sábado, 31 de dezembro de 2011

Era uma vez um homem triste em Janeiro de 2013

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Cinco e meia da manhã. A velha cebola lembra que acabou a noite. Manuel olha para o relógio na escuridão do quarto gelado, esfrega os olhos, levanta-se a custo e vai à casa de banho. Em 15 minutos está vestido e pronto para mais um dia. Olha para a mulher a dormir, veste o casacão velho de tanta viagem, entra na sala, dá um beijo às filhas enroladas num cobertor de papa e sai para o gelo da rua.
Manuel vive em Coina, no Beco Força do Povo, numa cave húmida, com um quarto, uma sala e uma casa de banho minúscula. A casa é mínima e paga uma renda de 150 euros. Foi o melhor que se pôde arranjar quando tiveram de sair do bonito apartamento de Telheiras, um T3 espaçoso comprado em 2005, com dois lugares de garagem num condomínio quase de luxo, para uma classe média alta típica da grande cidade. Deixaram de pagar as prestações quando Manuel foi despedido do stand de automóveis sem um tostão no bolso. O patrão já tinha avisado em Dezembro de 2011, no jantar de Natal da firma. Mas quando em Janeiro rebentou a bomba ninguém queria acreditar que não havia dinheiro nem para pagar indemnizações. Manuel e a mulher, Luísa, que era secretária do patrão, olharam um para o outro e choraram abraçados.
Nessa noite não comeram, não dormiram e só olhavam para as duas filhas a brincar com os presentes de Natal. Manuel ganhava o ordenado mínimo, mas as comissões sempre tinham dado para uma vida mais que confortável. Luísa recebia 500 euros, mas adorava estar ali ao pé do marido todo o dia. Nem lhe passava pela cabeça sair dali. Apaixonaram-se, casaram e tiveram duas filhas no meio dos carros. Adoravam passar férias na República Dominicana, muitos Invernos iam até Espanha fazer esqui com as miúdas, tinham dois carros e aquele belo apartamento. De um dia para o outro caíram no abismo.
Foram logo ao centro de emprego para tratar do subsídio. Más notícias. Com o salário mínimo e o tempo de casa, ficavam a receber os dois pouco mais de mil euros durante seis meses. Como estavam os dois desempregados iam receber mais 10 por cento. O desespero era muito, Luísa não parava de chorar. Manuel arregaçou as mangas e numa noite em branco decidiu ir ao banco falar da casa. Não podia pagar mais a prestação. Tinha de sair dali antes que o pusessem na rua. Falou com a mulher e foi um inferno. Choros, comprimidos, mais choro, desespero. Falou com os sogros, gente humilde que vivia na outra banda, muito perto de Coina. Era melhor viverem ao pé deles por causa das miúdas.
Em Julho saíram de Telheiras e lá foram para Coina, para a cave húmida e mínima. Tinham vendido os dois carros e o subsídio de desemprego estava quase a acabar. Restava o subsídio social, uma miséria.
Manuel não parou. Tinha de arranjar um emprego. Ligou para amigos, inimigos e clientes. Um, o senhor Mateus, ficou aflito e, a medo, ofereceu-lhe um lugar de empregado de mesa na sua pastelaria no Campo Pequeno. Ordenado mínimo e gorjetas. Doze horas por dia, seis dias por semana. Descanso ao domingo. Não hesitou. Luísa não. Entrou em depressão, não saía de casa, não tratava das filhas, não cozinhava, nada. Sexo era algo que tinha desaparecido daquela casa.
Manuel saiu de casa. Estava um frio de morte e fez-se ao caminho. A estação era mesmo ali. Apanhava todos os dias o comboio das 6h13, chegava a Entrecampos às 6h44 e pouco depois já estava na pastelaria a beber um galão e a comer um queque.
Nesse dia, 12 de Janeiro de 2013, Manuel saiu do trabalho depois das oito da noite, apanhou o comboio do costume, às 8h25, e chegou a Coina às quatro para as nove da noite. Levava um macarrão para as filhas e a mulher. Um gesto amigo do senhor Mateus. As filhas almoçavam na escola e o jantar era sempre uma oferta do seu velho cliente, o único que lhe tinha dado a mão.
Entrou em casa. Um gelo na escuridão. As filhas estavam sentadas no chão. Quase a dormir. Há muito que não viam televisão. Não havia. A mulher estava na cama. Embrulhada em lençóis e cobertores. A casa cheirava a gente, cheirava mal. Aqueceu o macarrão e deu de comer às filhas. Deitou-as e foi-se deitar. Tentou acordar a mulher. Em vão. Insistiu.
– Luísa, acorda, por favor.
– Não me chateies. Deixa-me dormir. tenho frio.
– Não podes viver assim. Não nos faças isso. Olha as tuas filhas.
– Não quero saber de nada. Acabou-se tudo.
– Não digas isso. Tens de reagir. Olha o que o médico te disse.
Luísa levantou-se. Furiosa. Os olhos negros encovados, a cara magra irreconhecível, ela que era uma mulher bonita e sensual, as mamas fora da camisa de noite, o cabelo porco e desgrenhado.
– Não me fales do médico. Quero lá saber desse filho da puta. Eu quero é que o gajo me dê a merda do remédio para dormir.
– Luísa, tem calma. Isto não vai ser sempre assim, porra. Há gente a viver pior que nós.
– Vai-te foder. Não temos dinheiro para nada. Nem para a merda de um duche.
– É verdade. Mas podes lavar-te com água fria. Ao sábado tomamos banho.
– Não me fodas com essas tretas de merda. Estamos fodidos, não percebes?
– Percebo. Mas eu preciso de ti. E as tuas filhas? Olha para elas. Precisam tanto de ti... E eu já tenho saudades de fazer amor contigo.
– Bate umas punhetas. Vai para o caralho.
Luísa atirou-se para cima da cama, enrolou-se nos lençóis e nos cobertores e Manuel ficou ali, de pé, sem palavras, no meio da escuridão do quarto sujo e do cheiro nauseabundo da casa. Despiu-se, vestiu o pijama, sentou-se na cama, pôs a cabeça entre as mãos e chorou. Baixinho.
A velha cebola fez o seu serviço e acordou-o às cinco e meia da manhã. Manuel levantou-se muito devagar. Doía-lhe a cabeça, tinha frio e as pernas pesavam--lhe como chumbo. Lembrou-se da conversa com a mulher enquanto passava água fria pela cara. Vestiu-se lentamente. Mais lentamente do que era costume. Olhou para o espelho e demorou uns segundos a ver uma cara gasta, com a barba por fazer, olheiras profundas e um cabelo oleoso horrível.
Deu um beijo às filhas, que dormiam como dois anjos no meio de uma esterqueira, bateu com a porta e foi para a estação. Estava muito frio. O corpo não queria andar, as pernas doíam-lhe. A cabeça estava leve. Estranhamente leve. Chegou à estação cansado. Sentou-se num banco. Tinha uns minutos antes do comboio das 6h13. Baixou a cabeça e ficou assim uns minutos. A mulher linda de morrer, as filhas alegres, os carros, a casa de Telheiras, as férias na praia, a neve no Inverno, as noites de farra no Elefante Branco com amigos, o sexo louco com a mulher. O filme de uma vida durou pouco tempo. A gare encheu-se de gente. Triste, ensonada, gelada, cansada. O comboio apitou ao longe. Manuel levantou-se. Deu uns passos em frente. Olhou para esquerda. E deixou-se cair lentamente para a linha.

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