Maravilho monumento da historia
nacional, este castelos de belas torres e grandes muralhas parece
desafiar o tempo e as intempéries.
Sobre
elevado planalto da acidentada região nordestina beirã – ali onde nasce
o Távora, cujas águas, percorrida a nornoroeste meia centena de
quilómetros, vão vasar-se nas do Douro – tem assento a Vila de Trancoso,
e, dentro dela, o vetusto castelo que durante séculos atentamente
custodiou a primitiva povoação, cujo âmbito os perdurantes restos do
medieval muralhamento ainda permitem conhecer.
Na
sua configuração definitiva, o castelo de Trancoso mostra-se
constituído por uma assaz extensa linha de muralhas, reforçada por cinco
torreões, circundando o terreiro no qual se ergue, um tanta
descentradamente, a robusta mas atarracada torre de menagem, cuja forma
curiosamente se afasta um tanto do habitual paralelepípedo, para tomar,
embora pouco acentuadamente, a de pirâmide quadrangular truncada. Duas
portas rasgadas na muralha dão acesso ao terreiro; e, na torre de
menagem, uma janela aberta em arco de ferradura permite conjecturar que
esse elemento do castelo – talvez o unico inicialmente – representa
construção, ou mais provavelmente reconstrução, realizada em época do
domínio muçulmano, sendo assim bem mais antigo, portanto, do que a
muralha, erguida e reerguida quando já a tranquilidade de posse
portuguesa se cimentara por aqueles lugares.
Historicamente
o castelo de Trancoso tem muito de comum com o de Penedono, que dele
dista para norte, umas cinco léguas. Sem mergulhar em mais vetusta
história, a dos tempos romanos e das sucessivas invasões que se
seguiram, pois seus traços só vaga ou duvidosamente podem ser
entrevistos – mas remontando apenas aos começos da segunda metade da
Idade Média, um impressionante paralelismo pode ser invocado. Assim,
ambos esses castelos figuram na lista dos doados ao mosteiro de
Guimarães em 960 por D. Chamoa Rodrigues, que de seu pai, Rodrigo
Tedoniz, promotor do repovoamento dessa zona, os herdara; ambos
suportaram durante um século desde pouco depois daquela doação até à
definitiva reconquista das terras de Entre-Douro-e-Mondego pelo monarca
leonês Fernando Magno, que abrangeu a de Trancoso em 1057 ou 1058, as
alternativas de posse muçulmana e de posse cristã; ambos constituíram,
bem mais tarde, acarinhados domínios da notável estirpe dos Coutinhos.
Porém a história do castelo de Trancoso abrange, a par desses traços
comuns, outros que lhe são próprios, Em 1140, ao tempo em que uma
ofensiva muçulmana atacava e destruía o primeiro castelo português de
Leiria, outra flecha invasora avançou pela Beira até Trancoso, saqueou a
povoação, e danificou sem duvida o castelo; mas Afonso Henriques
sobreveio com gente de guerra, repeliu os assaltantes, reconstituiu a
vida cristã e restaurou a defesa casteleira. Uns vinte anos depois, em
data cuja precisão é desconhecida, deu ele a Trancoso a seu primeiro
foral, premiando assim a esforçada gente que, sem temor de novos
ataques, ali regressara, ou para ali viesse acrescentando aos velhos
leres novos lares. Em 1207, D. Afonso II, confirmando esse diploma
foraleiro, usou de termos que traduzem aumento da população e mais
assente a vida humana. Ora é intuitivo que com esse progresso
demográfico e consequentemente económico devem ter coincidido o desejo e
as possibilidades de conservar o amparo que à povoação dava o seu
castelo.
Volvidas
umas quatro décadas, nos agitados tempos dos últimos anos, do reinado
de D. Sancho II, o domínio do castelo de Trancoso atravessou
vicissitudes análogas às de muitos outros, mas acabou por ficar em mãos
de adeptos do regente nomeado por Inocêncio IV, o infante Afonso, irmão
do Rei e seu futuro sucessor. Em 1248, quando as forças militares do
infante castelhano, futuro Afonso X, que tinham vindo auxiliar o monarca
português deposto, se retiravam para Castela, após derrotadas próximo
de Leiria, indo com elas, a caminho do exílio o próprio monarca,
ocorreu, ao passarem por Trancoso, um episódio com muito daquele
espirito de cavaleria tão característico da Idade Média. Do castelo saiu
um dos cavaleiros que o ocupavam, Fernando Garcia de Sousa, e veio
desafiar para combate singular Martins Gil de Soverosa, fiel mas algo
turbulento servidor de D. Sancho II e alto personagem da sua Corte,
afirmando que a sorte do duelo decidiria o destino político do castelo;
porém Sancho II opôs-se à realização do encontro, decerto por convencido
já de se achar perdida, ao menos de momento, a sua causa. Assim, a
hoste retomou a marcha e no castelo de Trancoso tudo se manteve como
anteriormente, no acatamento do poder exercido pelo Regente.
Com
o advento do filho e sucessor de D. Afonso III, D. Dinis, novamente o
castelo de Trancoso se insere na vida geral da Nação. Com efeito, foi
este ilustrado monarca quem oito anos depois de ter recebido por esposa
nessa vila, a 24 de Junho de 1282, D. Isabel de Aragão, a Rainha Santa,
promoveu o muralhamento da povoação, reforço de defesa militar que
indubitavelmente acarretou o do castelo, como, aliás, decerto lhe
aconselhava o seu latente desejo de obter para Portugal, diplomática ou
militarmente, o território chamado de Riba-Coa, frente ao qual aquela
fortaleza era, por assim dizer, quase fronteiriça.
Por
um século, os acontecimentos do castelo de Trancoso esbatem-se numa
prolongada vida rotineira, e só as perturbações políticas acarretadas
pela morte de D. Fernando vem reacender-lhe o brilho nas páginas da
história nacional. Ao findar a primavera de 1385, planeando João I de
Castela a sua segunda invasão de Portugal, que logo veio a realizar,
aliás sem êxito, pela fronteira de Elvas, ordenou que outras forças
castelhanas simultaneamente talassem as terras da Beira; assim, troço de
gente de guerra transpôs a fronteira portuguesa por Almeida, passou
junto de Trancoso, destruindo culturas, queimando casas, cativando
moradores, até atingir Viseu, cidade aberta que igualmente sofreu
violências de saque e de incêndio. No castelo de Trancoso, o alcaide,
Gonçalo Vasques Coutinho, sem forças militares que pudessem medir-se com
as do invasor, numericamente muito superiores, houve de assistir
impotente à decorrente razia; porém, quando o inimigo regressava,
conduzindo avultado número de camponeses que aprisionara e abundante
produto dos saques realizados, saiu-lhe ao caminho com seus homens de
armas e numerosa peonagem que armara, forças estas a que se tinham
juntado as do alcaide do castelo de Linhares, Martim Vasques da Cunha, e
as do de Celorico, João Fernandes Pacheco, a cujos bons ofícios se
devera a reconciliação pessoal daqueles dois importantes nobres
regionais, até então desavindos. Travou-se, então num dos primeiros oito
dias de Junho, ali perto, no alto da capela de S. Marcos. o importante
recontro conhecido pela denominação de batalha de Trancoso, cujas
circunstâncias políticas, bélicas e cronológicas se acham minuciosamente
estudadas, em livro assim mesmo intitulado, pelo mais proficiente
historiador desse sucesso e dessa época. o Dr. Salvador Arnaut, e cujo
desfecho completo, destroço das forças castelhanas e recuperação das
suas presas, pessoais materiais – constituiu notável contributo para a
consolidação da autoridade do Mestre de Avis e subsequente triunfo da
causa portuguesa nele personificada.
Pouco
depois houve novo alarme no castelo de Tracoso: correndo o mês de
Julho, forças inimigas sob o comando do próprio monarca castelhano
entraram em Portugal, também por Almenda e foram passar no alto de S.
Marcos, cuja capela furiosamente incendiaram;, de aí, porém, a hoste
virou ao sul para Celorico, encaminhando-se para Lisboa, que afinal não
chegou a atingir, destroçada como veio a ser na batalha de Aljubarrota,
Duas novas invasões, em 1396 e 1398, se derramaram por aquelas terras
beirãs, mas já então a aura da paz se pressentia próxima, essa paz que
tornou possível o advento duma nova fase da vida nacional, a de
actividades já não circunscritas ao estreito quadro peninsular, mas
alongadas ao vasto panorama ultramarino, para o qual uma velha vocação
marítima como que predestinara Portugal. Depois, séculos correram sobre
séculos; e, remotamente extinta a eficiência militar dos velhos
castelos, este aqui evocado ficou praticamente confiado ao amparo da
povoação que fora inicialmente sua pupila – a risonha e progressiva vila
de Trancoso.
Porém
o castelo de Trancoso não revive apenas nas efemérides policias e
militares da sua existência, porquanto nele a História e a lenda se
conjugam: a Lenda doirando a História, quer com a animação dum
imaginado, mas vivificante halo de sobrenaturalidade, quer com a
evocação dum heróico feito individual em que a imaginação popular fundiu
duas épocas cronologicamente bem afastadas. Com efeito, em alguns
escritos seiscentistas ficou arquivada a tradição de que peca a vitória
de Trancoso muito contribuíra o próprio evangelista S. Marcos,
miraculosamente aparecido, como valoroso cavaleiro, a estimular e
coadjuvar os combates portugueses; numa rocha teria ficado mesmo
impressa a marca duma ferradura do seu cavalo.
Desta
confusa e intricada trama de tradições, uma condução é licito tirar: a
de que na alma do povo viveu, transmitindo-se de geração em geração,
fundindo-se em parte, e em parte dissociando-se, mas sempre aureolada de
lendário adorno, a memória de dois dos mais vivos episódios históricos a
que se acha ligado o castelo de Trancoso, os de 1140 e de 1385.
E
é assim – na evocação da gloriosa história do castelo de Trancoso, e no
halo de tradições, dela poético complemento – que ainda hoje podem e
devem ser contempladas essas muralhas e essas terras que em momentos
críticos da vida nacional, o do seu crescimento e o da sua definitiva
autonomia, constituíram solido reduto donde partiram para a defesa da
Pátria alguns corações verdadeiramente portugueses.
Castelo de Trancoso (no.sapo.pt)
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